terça-feira, 16 de setembro de 2025

A busca de um espelho que reflete a essência da alma humana

Diferentemente de “2001 - Odisséia no Espaço” (1968), de Stanley Kubrick, quetem como referência o espaço e o tempo como caminhos para o conhecimento, o filme "Solaris"(1972), dirigido por Andrei Tarkovsky, é também uma obra-prima da ficção científica com forte carga filosófica e emocional, levando o espectador uma profunda reflexão sobre o homem e a própria existência através de um jogo espelhos. Os dois filmes produzidos numa mesma época, também têm como cenários similares o espaço curvo, iluminado e asséptico das naves espaciais. Tudo começa quando o psicólogo Kris Kelvin (Donatas Banionis) é enviado a uma estação espacial que orbita o misterioso planeta Solaris, com a missão de avaliar após uma série de incidentes, o estado mental dos cientistas que ali trabalham. Ao chegar, ele descobre que um dos tripulantes cometeu suicídio, após deixar uma gravação em vídeo sobre o que estava ocorrendo na nave espacial e os outros dois estão à beira da loucura, com equipamentos desativados, um deles escondendo uma criança que mantém afastada dos outros tripulantes. O planeta Solaris, coberto por um oceano aparentemente consciente, começa a materializar figuras humanas extraídas das memórias mais profundas dos astronautas, inclusive Hari(Natalya Bondarchuk), a esposa falecida de Kelvin, que aparece viva na estação. Esse momento revela o conflito entre razão e emoção, pois mesmo sabendo que Hari é uma materialização gerada por Solaris, Kelvin se vê emocionalmente envolvido, questionando o que define o amor e a identidade ao declarar : “Ela não é Hari. Ela é uma construção. Mas eu a amo,” para concluir que se ela é uma ilusão, ele igualmente o seria. O filme representa um mergulho nas complexidades da mente humana e das relações sociais, explorando temas como culpa, luto, amor e a impossibilidade de compreender o desconhecido. Tarkovsky usa a ficção científica não para mostrar tecnologia, mas para investigar a alma a partir de um viés filosófico e literário que se justifica nas cenas da biblioteca da estação espacial, como também na casa de um dos personagens em terra onde há livros em profusão. Há quem considere o filme com 166 minutos de duração uma meditação cinematográfica sobre a condição humana e na cena antológica da biblioteca onde há uma citação sobre “o homem precisa de homem,” fica expressa a ideia de que, diante do desconhecido, o ser humano busca conexão, não com o cosmos, mas com outros seres humanos. A sequência é reforçada pela imagem de D. Quixote, personagem literário que lutou contra moinhos de vento num hiato entre a razão e a loucura. Enquanto Tarkovsky questiona se a consciência artificial pode ter alma ou, se somos apenas projeções de nossas emoções. Uma das frases mais associadas ao filme destaca que “não precisamos de outros mundos, precisamos de espelhos,” revelando que a questão é explorar o espaço, mas o interior humano com toda a sua complexidade. Kelvin também faz referência ao fato de que perdemos a nossa percepção do cosmos e complementa lembrando que “o sentido da vida e outros temas pouco preocupam ao homem feliz” Ao transformar a ficção científica em poesia filosófica Tarkovsky coloca em questão problemas que preocuparam a Dostoiévski e a Nietzsche, que desconfiava da pretensão da ciência de explicar tudo racionalmente e buscava uma dimensão estética entre o apolíneo e o dionisíaco. Em Solaris, o planeta desafia qualquer tentativa de compreensão lógica, expondo os limites da ciência diante do mistério e do irracional, algo que Nietzsche também abordava ao valorizar o instinto e o inconsciente e a capacidade de superação do homem através de um Super-homem. Em paralelo, a repetição das aparições de Hari pode ser vista como uma forma de "eterno retorno" emocional e Kris é forçado a reviver sua culpa e dor, confrontando o passado de forma cíclica e inevitável. O personagem considera que o sofrimento sombreia a vida e nos enche de ssuspeitas até mesmo talvez sobre a realidade objetiva, afinal o homem segundo ele, ama o que pode perder. Embora Tarkovsky não fale em “Übermensch”, o Super-homem, o filme sugere que o confronto com Solaris exige uma transformação interior, uma superação da condição humana limitada, algo que Nietzsche também propunha como caminho para transcender o niilismo. Já a questão do espelho remete à ideia nietzscheana de que a verdade não é algo externo a ser descoberto, mas sim uma construção humana, muitas vezes um reflexo de nossos próprios desejos e medos das pessoas. O próprio escritor Stanisław Lem, autor do livro original que resultou no roteiro do filme, considera que Tarkovsky desviou da proposta científica e filosófica do romance para criar algo mais introspectivo e espiritual. Para ele, o cineasta fez “Crime e Castigo” em vez de Solaris. Isso também aproxima o filme de Dostoiévski, outro pensador que influenciou Nietzsche profundamente. numa obra que dialoga com o niilismo, a introspecção e a crítica à razão, todos temas caros ao pensador alemão. Tarkovsky leva ao filme uma espiritualidade que lembra o misticismo russo presente em Dostoiévski. A ideia de que o ser humano precisa se reconciliar com sua alma, e que o amor pode ser redentor mesmo diante do absurdo, é uma ponte direta entre os dois autores. Tarkovsky, que morreu em 1986, aos 54 anos e se consagrou com um dos mais influentes cineastas russos, chegou a dizer que queria fazer filmes que falassem à alma, não apenas à razão. Em Solaris, ele transforma a ficção científica em um espelho da própria alma humana e ensina que a felicidade é um conceito antiquado, pois a verdade não é objetiva, mas uma construção humana. Ao mesmo tempo confronta a condição dos personagens ao cenário das conquistas espaciais ou de cidades modernas com grandes edifícios e estradas e avenidas sem fim até chegar ao campo com seus rios e lagos, o que leva o espectador a indagar: seria o final da busca de um espelho que reflete a essência da alma humana ou não? (Kleber Torres) Ficha Técnica Elemento Detalhes Título original: Солярис (Solyaris) Direção: Andrei Tarkovsky Roteiro: Andrei Tarkovsky e Fridrikh Gorenshtein, baseado no romance de Stanisław Lem Elenco: Donatas Banionis, Natalya Bondarchuk, Jüri Järvet (Snaut), Anatoli Solonitsyn (Sartorius) Trilha sonora: Eduard Artemyev Direção de arte: Mikhail Romadin Fotografia: Vadim Yusov Montagem: Lyudmila Feiginova País de origem: União Soviética Ano de lançamento: 1972 Duração: 166 minutos Gênero: Drama, Ficção Científica Prêmios e Reconhecimento: Festival de Cannes (1972): Prêmio Especial do Júri e Prêmio FIPRESCI Indicado à Palma de Ouro

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

A batalha ideológica entre a utopia e o pragmatismo numa Magalópolis

O amanhã é o tema central de Megalópolis(2024), de Francis Ford Coppola, uma obra ambiciosa e multifacetada, que mergulha em diversos temas profundos e provocativos com um debate sobre o futuro e o tempo para construção de uma terra de justiça e vida longa para todos, a partir da metáfora de uma Nova Roma que é Nova York. O conflito central gira em torno de dois personagens: Cesar Catilina (Adam Driver), um urbanista visionário que sonha com uma cidade utópica, e o prefeito Franklyn Cicero (Giancarlo Esposito), um político pragmático e conservador, que defende a manutenção da ordem existente, com preservação das suas instâncias de poder. A obra reflete a disputa entre o idealismo transformador e conservadorismo institucional, através de debates sobre o papel da política, da economia e das pessoas como agentes na construção do futuro. Tudo acontece em uma Nova York futurista, agora rebatizada de Nova Roma, onde um visionário arquiteto sonha em reconstruir a cidade como uma utopia autossustentável, utilizando um material revolucionário que ele próprio desenvolveu, o megalon. Seu projeto, chamado Megalopolis, propõe uma metrópole orgânica, integrada à natureza e ao bem-estar coletivo para a sua população. Os seus planos entram em conflito com o do prefeito local, um político conservador que defende a manutenção da ordem tradicional e teme mudanças que por certo poderiam gerar o colapso das estruturas de poder ou prejuízos aos grupos econômicos. À medida que os dois se enfrentam, a cidade se torna palco de uma batalha ideológica entre utopia e pragmatismo, arte e política, liberdade e controle social, enquanto a filha do político se apaixona pelo arquiteto, com quem acaba tendo um filho. Com elementos de tragédia shakespeariana, inclusive o ser ou não ser de Hamlet, além de alegorias romanas que aparecem em citações profusas, bem como no nome latino personagens como César Catilina, Cícero, Crasso, Júlia e uma refinada crítica social contemporânea, Megalopolis é uma fábula épica, com ares de tragédia, com questioinamentos sobre o futuro das cidades, o papel do poder e os limites da imaginação humana. César diz num determinado momento, que o ser humano com toda a sua complexidade é um grande milagre, uma criatura viva para todos admirarem, pois foi criado do mesmo material com o qual são feitos os sonhos. No final, ele abre os portões da cidade fazendo com que o mundo mudasse para sempre, e recebendo de herança no testamnento do banqueiro Crasso, uma fortuna para viabilizar o seu sonho construtivista. O foco na reinvenção urbana e sustentabilidade é inspirado em projetos reais como os do arquiteto barasileiro, Jaime Lerner, em Curitiba, que também foi prefeito daquela cidade. Em essência, o filme que custou cerca de US$ 136 milhões, propõe uma nova forma de pensar as cidade mais humanas, sustentáveis e integradas com a natureza. A fictícia da Nova Roma serve como palco utópico para discutir planejamento urbano, coleta seletiva, saneamento básico, lazer, tecnologia e até mesmo o controle social. O próprio Coppola afirmou que Megalopolis é uma metáfora de sua própria trajetória no cinema, com ele se colocando de forma utópica e com sacrifício financeiro como um artista que luta contra o sistema para realizar sua visão para construção de um mundo melhor. O filme coloca ao espectador o sacrifício pessoal, a resistência criativa e o conflito entre arte e indústria, especialmente em um cenário dominado por franquias e fórmulas comerciais numa sociedade mercantilista. Com muitas citações de clássicos e de referências à Roma Antiga e à filosofia, com personagens que evocam figuras históricas de Roma, o roteiro que foi assinado pelo diretor Francis Ford Copolla explora questões como virtù, fortuna, corrupção, ética pública e a manipulação da verdade — temas caros à tradição maquiavélica. O próprio lançamento do filme financiado pelo cineasta e rejeitado por estúdio é uma crítica à mercantilização da arte e à falta de espaço para obras autorais. Há também quem considere criticamente que o filme se posiciona contra o “panem et circenses” contemporâneo, com questionamento ao entretenimento raso, repetitivo e voltado apenas ao lucro. A Nova Roma é uma cidade fictícia onde se passa a trama, funciona como uma metrópole que mistura elementos clássicos da arquitetura romana com corridas de bigas e lutas de gladiadores em contraponto com arquitetura futurista. Já a metáfora de Roma envolve a decadência das instituições, com estátuas romanas gigantes ruindo, placas com a palavra LEX (lei) se quebrando, a decadência de famílias e como em Maquiavel, que aborda a questão da repetição histórica, a política romana serve de modelo para entender os ciclos de poder e corrupção, o que envolve o pão, o circo, além das saturnálias com seu tom carnavalesco marcando o fim de um ano agrário e religioso com jeito carnavalesco. Megalópolis também envolve o teatro político entre suas sequências, com os debates entre personagens ocorrendo como em uma tribuna romana, com pompa e teatralidade, evocando o Senado e os jogos de retórica da Roma Antiga. Já o personagem, Cesar Catilina, se mostra capaz de manipular o tempo, parando literalmente a queda de um prédio durante uma implosão para poder contemplar a cena. O tempo em termos do arco de passado, presente e futuro no filme é também uma metáfora de controle sobre o destino e a política, pois, quem quem domina o tempo, domina a narrativa histórica. Isso também envolve a suspensão da própria realidade, uma vez que Coppola brinca com o tempo cinematográfico para sugerir que a utopia exige romper com o presente. Para completar, esse tempo também séria elemento de memória e futuro, uma vez que o tempo é tensionado entre o peso do passado romano e a promessa de uma cidade ideal. Para complementar a compreensão do filme, o “megalon”, material inventado por Catilina, é orgânico, adaptável e revolucionário. Ele seria uma metáfora de transformação social e urbanística, deixando antever que uma cidade pode ser reconstruída com novos materiais, valores e estruturas. Já em termos políticos, o material se funde ao ambiente como o poder deveria se fundir às necessidades do povo. Como utopia. o megalon é a matéria da imaginação e de uma cidade que ainda não existe. O filme é também embute uma crítica à teatralidade da política moderna e à demagogia populista, em que os líderes fingem romper com o sistema, mas o reforçam, utilizando-o em benefício próprio. Ha ainda referencias a atentados, mortes, traições conjugais e sucessão nas instâncias de poder político e econômico regado a drogas e sexo.Na outra ponta, fica o alerta para os riscos da falência da democracia quando uma população, desamparada, aceita figuras autoritárias como solução dos problemas coletivos. Além das referências explícitas à Roma Antiga, Megalópolis, que custou cerca de R$ 136 milhões gerando uma receita de apenas US$ 13 milhões aos seus produtores, inclui referências filosóficas a Maquiavel, e ao pensamento de Spinoza e Nietzsche, sugerindo que a política é cíclica e que os dilemas humanos se repetem. O filme propõe uma reflexão sobre a natureza humana, a virtù (conceito teorizado por Maquiavel englobando uma ampla coleção de traços necessários ao líder para manutençãp do estado e a realização dos grandes feitos), e o papel do indivíduo na transformação social. Deixa ainda um alerta de que os Estados Unidos acabou como mestre do mundo conhecido e que às vezes, é preciso um leve empurrão para derrubar uma república ou melhor, um império. (Kleber Torres) Ficha Técnica Título original Megalopolis Direção Francis Ford Coppola Roteiro Francis Ford Coppola Elenco Adam Driver, Giancarlo Esposito, Nathalie Emmanuel,Aubrey Plaza, Shia LaBeouf, Jon Voight, Laurence Fishburne, Dustin Hofmann, Talia Shire, Jason Schwartzman e Kathryn Hunt Música Osvaldo Golijov Cinematografia: Mihai Mălaimare Jr. Edição Cam McLauchlin, Glen Scantlebury Gênero Drama, Ficção Científica Duração 138 minutos País de origem Estados Unidos Idioma Inglês Lançamento 16 de maio de 2024 (Festival de Cannes) / 27 de setembro de 2024 (EUA) Distribuição Lionsgate Films Companhias produtoras American Zoetrope, Caesar Film LLC Orçamento US$ 120–136 milhões Receita US$ 13,9 milhões

quinta-feira, 26 de junho de 2025

Uma viagem muito além das estradas do mundo e da vida

A maior ousadia do filme na Estrada baseado no romance On the Road, de Jack Kerouac, é justamente tentar adaptar um dos romances mais emblemáticos da literatura beat e considerado uma obra infilmável pela própria estrutura complexa da obra. O livro que serviu de base para o roteiro de José Rivera foi escrito num estilo de fluxo de consciência e com estrutura fragmentada a partir das ideias dos personagens, o que dificulta a sua transposição para o universo cinematográfico, mesmo assim o diretor Walter Moreira Salles, optou por uma abordagem sensível e respeitosa, buscando preservar o espírito errante, contestatório e existencial da obra original, que foi um marco da geração beat e considerada um ícone da contracultura ao retratar a viagem no sentido mais amplo de dois amigos através dos Estados Unidos em busca da liberdade e de novas experiências existenciais. Em termos de estética, linguagem cinematográfica e visualmente o filme é deslumbrante. A fotografia de Eric Gautier capta com lirismo as paisagens norte-americanas, reforçando o sentimento de deslocamento e busca dos personagens. A trilha sonora de Gustavo Santaolalla, com forte influência do jazz e do blues, ajuda a traduzir o ritmo literário e temporal de Kerouac para o cinema. Apesar da beleza visual e da sua plasticidade, o filme enfrenta dificuldades em capturar a profundidade emocional e o fluxo interno do que passa na cabeça dos personagen deixando a narrativa, por vezes, episódica e aparentemente desconectada, o que pode dificultar o envolvimento do espectador com os personagens. Ele descreve bem a geração beat retratada Sam Riley (Sal Paradise), um jovem escritor que tenta decolar no mundo literário e ao mesmo tempo atua de forma mais contida, refletindo o papel de observador do protagonista, que é em realidade um alter ego de Jack Kerouac. Já Garrett Hedlund (Dean Moriarty) , que na vida real seria Neal Cassidy, considerado uma das figuras centrais da Beat Generation dos anos 1950 , influenciando a contracultura e o movimento psicodélico, tem papel de destaque no filme. Na vida real ele também escreveu O primeiro terço e influenciou obras como Uivo, de Allan Ginsberg, que aparece no filme interpretado por Tom Sturridge, enquanto Kristen Stewart surpreende como Marylou, trazendo sensualidade num triângulo amoroso e vulnerabilidade ao papel. Em essência, o filme aborda temas como liberdade, rebeldia, insatisfação, sexualidade e o vazio existencial da juventude do pós-guerra, sem perspectivas para o amanhã. No entanto, ao condensar o livro, o roteiro deixa de lado muitos momentos de introspecção e crítica social. Na Estrada é uma obra visualmente rica e emocionalmente sincera, mas que não consegue traduzir por completo a intensidade e o caos criativo do livro de Kerouac, marcado pela rebeldia. Ainda assim, é um filme que merece ser visto — não como substituto da obra literária, mas como uma homenagem cinematográfica à inquietação de uma geração que influenciou a contracultura e ao movimento hippie dos anos 60. Enquanto o livro é profundamente introspectivo e baseado em fluxos de consciência. O filme enfrenta o desafio de converter esse processo em imagens na linguagem cinematográfica. A estética polida do filme contrasta com a crueza da literatura de Kerouac. Os bastidores de Na Estrada foram uma verdadeira jornada — quase tão intensa quanto a dos personagens do filme. Walter Salles mergulhou profundamente no universo da geração beat para adaptar o romance de Jack Kerouac com autenticidade e sensibilidade. Antes mesmo das filmagens, Salles refez duas vezes o trajeto original percorrido pelos protagonistas do livro, cruzando os Estados Unidos de costa a costa pela rota 66. Durante essas viagens, ele também gravou um documentário com entrevistas de figuras ligadas à cultura beat, como a poeta Diane di Prima e o escritor Eduardo Bueno. A ideia era captar o espírito da época e entender o que movia aqueles jovens em busca de liberdade e transcendência. Francis Ford Coppola, que detinha os direitos do livro há três décadas, escolheu Salles para dirigir o longa-metragem após assistir Diários de Motocicleta, outro road movie dirigido pelo cineasta brasileiro, que ganhou o Oscar melhor filme internacional em 2025, com Ainda estou aqui . A escolha não foi por acaso: ambos os filmes (Diários e Na Estrada) compartilham o desejo de capturar o movimento, a inquietação e o desejo de transformação. Coppola tentou desenvolver o filme com diferentes roteiristas e diretores, mas esbarrava sempre na estrutura não convencional do romance, cheio de idas e vindas, e na dificuldade de capturar o espírito da geração beat. Em um depoimento a jornalistas, ele chegou a dizer que adaptar o livro foi uma verdadeira dor de cabeça e que chegou pensar em desistir da ideia.(Kleber Torres, com informações complementares do Copilot) Ficha técnica: Título original: On the Road Direção: Walter Salles Roteiro: Jose Rivera Elenco principal: Sam Riley (Sal Paradise), Garrett Hedlund (Dean Moriarty), Kristen Stewart (Marylou), Tom Sturridge (Allan Ginsberg), Bill Lee (William S. Burroughs), Kirsten Dunst, Viggo Mortensen, Amy Adams e Alice Braga Ano de lançamento: 2012 Duração: 139 minutos Gênero: Drama, Aventura Classificação indicativa: 16 anos Países de origem: Alemanha, Argentina, Brasil, Canadá, EUA, França, México, Países Baixos, Reino Unido Produção: Francis Ford Coppola (executiva), Charles Gillibert, Nathanaël Karmitz, Rebecca Yeldham

domingo, 15 de junho de 2025

Um retrato ímpar da complexa pele cultural e social da Bahia

Considerado um dos mestres do Cinema Novo, Nelson Pereira dos Santos dirige o filme Jubiabá, uma produção franco-brasileira, com um olhar atento aos detalhes e com uma sensibilidade que permite extrair, de cada cena, tanto a beleza quanto a crueza de uma realidade marcada pelo preconceito e pela luta por identidade ou mesmo afirmação política. Baseada no romance homônimo de Jorge Amado, a história narra a trajetória de Antônio Balduíno (Charles Baiano), um jovem negro, o qual em função da loucura da avó acaba adotado por um empresário que o expulsa de casa ao descobrir um suposto namoro com sua filha Lindinalva (Franoise Grossard), obrigando-o a esforçar-se para afirmar sua existência num contexto de marginalidade e desigualdade, passando transversal pelo mundo do boxe, do circo, da prostituição e mesmo da militância político-ideológica. A narrativa cinematográfica, que se desenrola de maneira quase poética, cria uma dualidade entre o drama pessoal dos personagens, religiãoea crítica social. Essa tensão é revelada por meio do uso inteligente dos recursos cinematográficos – desde o jogo de luzes até a composição das cenas – que traduz, visualmente, os conflitos internos dos personagens e a riqueza da cultura afro-brasileira, tendo como elo de ligação Jubiabá (Grande Otelo, numa das suas melhores interpretações dramáticas), que atua como personagem fundamental, uma espécie de sábio e conselheiro, um pai de santo e personalidade de grande influência sobre Balduíno, o que o torna uma das figuras centrais do filme. Também a própria ambientação do filme na Bahia, com seus casarios e ruas estreitas não é apenas um pano de fundo, mas sim um personagem vivo, inserido em cada diálogo e em cada enquadramento. A cinematografia capta com maestria a diversidade das paisagens baianas, utilizando planos que alternam entre o intimismo e a amplitude, reforçando a sensação de imersão do espectador na narrativa. A trilha sonora, composta por Gilberto Gil, interage com as imagens, formando um todo que se integra à dramaticidade da obra. O filme reúne artistas consagrados, como Betty Faria, Zezé Motta, Ruth de Souza, Jofre Soares, Mário Gusmão e Grande Otelo interpretando Jubiábá, cujo nome evoca a memória hiostórica, consciência e experiência das pessoas negras ou mestiças em relação à escravidão e à sua cultura. Eles oferecem interpretações que vão além da mera representação de estereótipos, entregando ao público personagens com profundidade e humanidade a partir de suas vivências e contradições. O quer se manifesta ainda na decadência do comendador (Raymond Pellearin), de Lindinalva e de Luigi (Julien Guiomar) numa autenticidade interpretativa que intensifica o impacto emocional do filme, permitindo que o espectador se conecte de forma visceral com os dilemas expostos pelos personagens– desde a busca por pertencimento à constante batalha contra a marginalização e à própria morte. Jubiabá se firma como uma obra cinematográfica fundamental na filmografia de Nelson Pereira dos Santos, que dialoga com a história e a cultura do Brasil, não apenas ao adaptar a narrativa amadiana que literariamente tem o sabor ameno de uma conversa ao pé do ouvido, mas criando um espaço onde o drama pessoal se funde com uma crítica social contundente, estabelecendo um marco na representação das questões raciais e identitárias. Tudo isso sem cair no mero folclorismo e num convite à reflexão sobre os caminhos e desafios de uma sociedade multiracial com todas as suas idiossincrasias para compreensão da nossa própria história. Ficha técnica Título original: Jubiabá Direção e roteiro : Nelson Pereira dos Santos, baseado no romance homônimo de Jorge Amado Elenco: Grande Otelo, Charles Baiano, Catherine Rouvel, Françoise Goussard, Betty Faria, Zezé Motta, Ruth de Souza, Jofre Soares, Mário Gusmão, Raymond Pellegrin e Julien Guiomar Gênero: Drama Duração: 107 minutos Países de origem: Brasil, França Idioma: Português Música: Gilberto Gil Classificação indicativa: 14 anos Ano de produção: 1987

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Quando a vingança pode terminar com um jeitinho brasileiro

Lançado inicialmente como Favela, Falcon Rising, que seria o marco inicial de uma franquia de ação sobre Codinome Falcon, o filme Falcon Rising, recebeu no Brasil o título de Vingança Fatal (2014) e é estrelado por Michael Jai White, interpretando John 'Falcon' Chapman, um ex-fuzileiro naval americano que enfrenta traumas psicológicos em consequência de suas experiências em combate, e depois de informado sobre um atentado, vai em busca de justiça para sua irmã Cindy (Laila Ali) brutalmente atacada por um grupo mafioso envolvido no tráfico humano e exploração sexual. O filme, rodado na Costa Rica, é dirigido por Ernie Barbarash, a partir de um roteiro de Y.T.Parazi, com uma trama que se desenrola no Rio de Janeiro, no Brasil, do qual aparecem apenas cenas referenciais do Cristo Redentor e do Pão de Açúcar, mas onde Chapman descobre um submundo de corrupção, tráfico de drogas e de pessoas, com exportação e exploração sexual de menores. Na busca pelos autores do atentado, Chapman conta com o apoio de um ex-colega que trabalha para a CIA no consulado dos Estados Unidos e que o apresenta a policiais brasileiros, os quais poderiam ajudar na investigação em uma favela dominada pelo tráfico, que mantém em lugar do estado omisso serviços de saúde, educação e assistência social para famílias carentes do morro. O filme também revela uma relação e parcerias heterodoxas entre policiais e criminosos como ocorre em muitas cidades brasileiras e em casos já noticiados pela mídia nacional. Michael Jai White entrega uma performance sólida, trazendo intensidade e ação ao papel de Chapman. As cenas de luta marcadas pela violência são bem sincronizadas, destacando as habilidades marciais do protagonista e a narrativa do filme enfoca questões morais e éticas, tendo como complemento a luta pela vingança e a busca por justiça. A inovação da trama, é que além dos traficantes de drogas, emerge a ação da Yakuza, uma organização criminosa transnacional e que neste caso estaria operando uma rede de tráfico e exploração sexual de adolescentes. O filme embora criticado por algumas pessoas ao considerar que ele faz uma representação superficial do Brasil, com elementos que não refletem a realidade local, como sotaques e cenários pouco autênticos, é instigante. A história também segue clichês do gênero, tornando-se previsível e pouco inovador, enquanto os personagens secundários carecem de profundidade, o que enfraquece a narrativa da trama. No final, Chapman lembra a um policial arrependido de ter se envolvido no mundo do crime, que “Deus não tem nada com isso, afinal você fez a sua escolha”, indicando os caminhos multiplos do livre arbítrio e mostrando que a vingança pode ser um prato que nem sempre se come frio. Como o filme tem como cenário o Brasil, o agente americano dá um jeitinho tipicamente brasileiro para a cobertura dos gastos com a recuperação da irmã de Chapman, que sofreu inclusive um traumatismo craniano em consequência do atentado sofrido: os custos seriam cobertos pelo governo americano que tem um sistema de amparo ao dependente dos seus servidores e assim, ele oferece e o herói aceita uma nova missão garantindo a solução de um problema e sinalizando a continuidade da franquia, naturalmente, com mais tiros, golpes de karatê e até de capoeira, além de sangue cenográfico em abundância e muita adrenalina. (Kleber Torres) Ficha técnica: Título Original: Falcon Rising (Vingança Fatal) Direção: Ernie Barbarash Roteiro: Y.T. Parazi Elenco Principal: Michael Jai White, Neal McDonough, Masashi Odate, Laila Ali, Lateef Crowden, Jimmi Navarro e Hazuki Kato Música : Neal Acree Cinematografia : Yaron Levy Gênero: Ação, Aventura Ano de Lançamento: 2014 Duração: 103 minutos País de Origem: Estados Unidos

terça-feira, 29 de abril de 2025

Assassinato de aluguel um negócio imoral que gera três mil mortes por ano

Anualmente ocorrem mais de três mil mortes no mundo provocadas por assassinos de aluguel, mas não há sinais que isto vai parar e pouco se sabe sobre estes profissionais que atuam acima do bem e do mal, sem restrições éticas ou morais. Este é o tema do episódio inicial da primeira temporada de Mercado Ilegal, uma série de programas de jornalismo investigativo apresentada por Mariana Von Zeller, explorando o funcionamento dos mercados ilegais no submundo mundial. Na sua pesquisa a jornalista ouviu sicários de Los Angeles, do México, passando pelo Brasil, Colômbia, Amsterdã e da África do Sul revelando um fenômeno global sem limites de fronteiras geográficas. No caso sulafricano, são estimadas nos últimos sete anos cerca de mil execuções por encomenda, o que torna o problema uma verdadeira epidemia agravada por um circuito de impunidade envolvendo a disputa entre grupos rivais, que lutam pelo domínio do mercado de táxis e vans de aluguel, responsável metade dos assassinatos de mando que ocorrem naquele país. A jornalista ouviu um grupo de três pistoleiros. Um destes profissionais declara sem hesitação que este é um negócio como outro qualquer e em função das encomendas alguém tem que morrer. O grupo de entrevistados incluiu um profissional de nível superior, que assume mais de 30 homicídios, considerando que matar é uma rotina e os preços podem ser contratados a partir de R$ 400,00. Há outro sicário que tenta analisar as raízes sociais do problema associando o crime de mando à pobreza, mas, em compensação não se arrepende do que faz. Em Amsterdã. Mariana Von Zeller vai muito além de uma simples exposição de casos isolados abordando integrantes de uma família de assassinos de aluguel e traficantes. Um deles alega que faz o que tinha de ser feito e sem hesitações ou restrições de caráter ético e moral destaca que esta seria uma questão de sobrevivência num mundo cão, onde outros profissionais estão igualmente disponíveis no mercado. A narrativa é densa e investiga minuciosamente o universo clandestino onde esses indivíduos operam, demonstrando como eles se inserem em uma complexa e interligada economia paralela, na qual a violência é transformada em uma mercadoria. Esse tratamento revela que, apesar do estigma e da condenação social, tais práticas emergem de contextos culturais, políticos e econômicos específicos que facilitam a proliferação desses mercados ilegais . A jornalista adota uma perspectiva que não se limita à apresentação de nomes e fatos, mas que busca compreender a lógica interna dessas redes criminosas. Dessa forma, ela explora os mecanismos organizacionais que regem a atuação dos assassinos de aluguel, destacando que eles operam dentro de um sistema muito mais amplo—onde o contrabando, a extorsão, o roubo e o tráfico se entrelaçam de forma intrincada gerando uma rede de poder. Essa visão sistêmica é essencial para perceber que os assassinos, longe de serem agentes isolados, fazem parte de um fluxo contínuo de transações ilícitas que refletem desequilíbrios socioeconômicos profundos e a fragilidade de certas estruturas repressivas e judiciais, o que revela a omissão dos governantes em relação ao problema. A série que aborda temas variados sobre mercados ilegais nos convida a pensar criticamente sobre a forma como a sociedade é impactada por essas atividades, muitas delas envolvendo somas bilionárias, ampliando a compreensão do funcionamento dos submundos criminosos, mas também evidenciando a necessidade de abordagens integradas—que combinem segurança pública, políticas sociais e práticas de prevenção—para mitigar a influência desses mercados na vida da própria sociedade e das nações. Van Zeller só não incluiu na sua reportagem a história de Júlio Santana, um brasileiro nato, pai de família exemplar e caridoso, responsável de 492 mortes, que foi imortalizado num livro e no filme “O nome da morte”, ele só foi preso por homicídio uma única vez e solto logo em seguida depois de pagar propina aos policiais sendo protegido pelo signo da impunidade(Kleber Torres).

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Quando o preço da verdade pode ser a própria morte

"O Preço da Verdade" (Dark Waters) é um filme que envolve uma grave denúncia sobre contaminação da água provocada pela DuPont no desenvolvimento do teflon, a partir de um composto químico PFOA ou C8 amplamente usado na produção de frigideiras e panelas antiaderentes, o que o torna um manifesto político e ambiental sobre uma questão de saúde pública de dimensão global. Dirigido por Todd Haynes e estrelado por Mark Ruffalo, que interpreta Rob Bilott, um advogado corporativo que enfrenta uma gigante dos setor químico para expor a contaminação ambiental causada pela empresa no desenvolvimento de novos produtos. A direção de Haynes é sensível e eficaz, capturando a tensão e a persistência necessárias para enfrentar um sistema protegido por advogados, cientistas, técnicos e burocratas a serviço de uma empresa que lucrou anualmente US$ 1 bilhão com a venda do C8 ao longo das últimas cinco décadas. A fotografia de Edward Lachman utiliza tons de verde, azul e amarelo para refletir a temática ambiental, a frieza corporativa e o aconchego familiar, respectivamente. Esses elementos visuais criam uma atmosfera de desesperança e poluição, alinhada à narrativa do filme que chega a ser lenta em alguns momentos a partir da contaminação do gado e de pessoas que viviam no entorno de uma fazenda nas margens do rio Ohio, na Virgínia Ocidental, onde estava instalado um depósito de resíduos industriais. O roteiro é cuidadoso ao mostrar a resistência popular através do personagem Wilbur Tennant, interpretado por Bill Camp, que perde o seu rebanho e a prória vida, enquanto Rob Bilott representa a escolha de usar o privilégio para buscar justiça. A história, baseada em fatos reais, é um poderoso lembrete da importância da resiliência e da luta contra a poluição e o escamoteamento de informações ambientais. "O Preço da Verdade" não é apenas um filme; é um chamado à ação e à reflexão sobre nosso papel na preservação do meio ambiente e na busca por justiça, oferecendo diversas lições importantes, especialmente relacionadas à coragem, ética, resiliência e impacto ambiental numa ação judicial morosa e que se arrastou por duas décadas, comprometendo a saúde do próprio Rob Bilott, que ve morrer clientes, enfrenta enormes obstáculos, com a perda amigos, renda pessoal e sofre pressões ao longo de sua jornada, mostrando sua crença na defesa da justiça. O filme revela como a contaminação ambiental pode afetar vidas humanas, animais e ecossistemas inteiros, diante dos olhos indiferentes dos órgãos governamentais, que atuavam de forma lenta na regulamentação de controles e monitoramento de problemas que oferecem riscos para as pessoas e o próprio planeta. Os dados levantados por Rob Billlot permitiram o registro de quase quatro mil casos de pessoas que tiveram a saúde afetada diretamente pelo C8 e vai permitir o acompanhamento de mais de 70 mil pessoas que podem inclusive desenvolver algum tipo de câncer somente na Virgínia Ocidental. Ficha técnica: Título : O preço da verdade (Dark Waters) Direção: Todd Haynes Roteiro: Nathaniel Rich, Mario Correa, Matthew Michael Carnahan Elenco : Mark Ruffalo, Anne Hathaway, Tim Robbins Bill Camp, Victor Garber, Mare Winningham e Bill Pullman Gênero: Drama, Suspense País de origem: Estados Unidos Ano de lançamento: 2019 Duração: 126 minutos